sexta-feira, 3 de abril de 2015

Avaliando os protestos e seus desdobramentos

Após as manifestações deste domingo, cabe um esforço para interpretar seus significados.

A primeira constatação: as manifestações foram muito amplas. Em texto anterior (“Cebolas e Algemas”) avaliei que os protestos não alcançariam as dimensões das jornadas de julho de 2013, mas que seriam impactantes. Penso que o foram efetivamente. Três motivos, em particular, devem ser lembrados para bem dimensionar o fenômeno:

1) As manifestações foram, em larga medida, autônomas e organizadas pelas redes sociais, sem o patrocínio de máquinas partidárias ou sindicais e sem o apoio de movimentos sociais.

2) Os atos transcorreram em todo o País, extrapolando as chamadas elites econômicas ou as camadas tradicionalmente situadas à direita no espectro político-ideológico.

3) O eixo político das mobilizações, claramente anti-Dilma e anti-PT, reduziu as possibilidades de agregar número ainda maior de descontentes. Se a mobilização tivesse sido convocada como uma jornada contra a corrupção, teria sido ainda muito maior.

As tentativas de minimizar as dimensões do protesto deste 15 de março mostram o quanto determinados segmentos do governo e do PT ainda não se deram conta das dimensões do problema. Neste particular, caracterizar os atos como “manifestação dos que não votaram na presidenta Dilma”, como sintetizou o ministro Miguel Rosseto (um dos melhores quadros do governo), ou como protesto de “coxinhas” no jargão militante da esquerda, me parece erro grave e equivalente à avaliação daqueles que, em junho de 2013, ficaram perplexos com as manifestações de rua e se inclinaram rapidamente a situá-las no campo “da direita” e mesmo do “fascismo”.

É óbvio que a maioria dos que foram às ruas hoje votaram em Aécio. Assim como é evidente que o núcleo ideológico das manifestações é claramente de direita. O problema é que a insatisfação popular com o governo e com a corrupção não é “de direita”. É simplesmente uma reação de quem não tolera mais o cinismo, os discursos formatados por marqueteiros e a prática reiterada de tratar as pessoas como se elas fossem incapazes. Também por isso, é provável que as manifestações tenham sequência e que reúnam progressivamente mais manifestantes. Os partidos tradicionais da oposição mantiveram uma postura discreta hoje, até porque não sabiam exatamente qual a dimensão que os protestos teriam. Depois do que ocorreu, o mais provável é que invistam nas mobilizações.

Isto coloca um desafio também para as forças de oposição à esquerda que ficaram agora “prensadas” pelas ruas. Nem podem se somar às mobilizações do campo “Brasil Livre”, nem possuem força suficiente para propor mobilizações à parte. O papel que poderão cumprir – se é que terão algum papel relevante a cumprir – é o de apresentar ao País uma agenda de reformas capazes de enfrentar a crise econômica e política. Uma tarefa complexa e que exigirá muito mais que fórmulas ideológicas e críticas morais.

Na verdade, o sentimento antigovernista e antipetista se alastrou como um incêndio morro acima principalmente pela leniência do governo diante dos escândalos da corrupção e pela capacidade, ao que parece inesgotável, de mentir sistematicamente, até para acusar os adversários em uma campanha e, depois, fazer exatamente aquilo de que os acusava.

O discurso oficial segundo o qual a corrupção agora é investigada - o que antes não ocorria – pode ser até “tecnicamente verdadeiro”, mas mesmo as pedras sabem que isso ocorre não porque o governo desejou que fosse assim, mas graças à autonomia crescente de instituições como o Ministério Público e a Polícia Federal, processo que tem início com a CF de 1988.

O governo Dilma não consegue enfrentar de fato a corrupção por conta de duas “amarras” principais:

a) a natureza de sua base de sustentação política, parte importante da qual irá frequentar as páginas policiais nos próximos anos, e

b) a herança de esquemas “não republicanos”, digamos assim, deixada pelo período Lula; entre eles a roubalheira montada na Petrobrás.

Duas outras condições tornam tudo mais difícil:

a) a presidenta não tem qualquer carisma, se expressa de forma sofrível e não tem a menor condição de travar a luta política com a desenvoltura, a legitimidade e a habilidade requeridas e

b) o PT é um partido paralítico, dependente até a medula do Estado e que não dispõe mais de quadros nacionais expressivos. Os eventuais sucessores de Lula foram abatidos por condenações (José Dirceu e Genoíno) ou por suspeitas sérias (Palocci). Mercadante, embora fortalecido pelas relações com Dilma, sempre foi muito contestado no PT. Os líderes do PT no Congresso são Sibá e Guimarães e seu presidente é Rui Falcão, o que é patético.

Lula, a única liderança nacional do PT, se preserva, para variar. Sabe que o governo Dilma não é o seu governo e que a situação é muito difícil. Se o governo conseguir contornar a crise, ele será o símbolo da “continuidade das mudanças” (outra pérola do marketing); se o governo Dilma afundar, ele será a promessa do “retorno aos bons tempos”. Para Lula, talvez exista uma batalha mais importante a travar agora e ela tem algo a ver com a extensão e a profundidade das investigações da Lava-Jato. Por isso, não me surpreenderá se ele for o fiador de um novo acordo com o PMDB de Renan e de Eduardo Cunha.

A reivindicação de impeachment de Dilma não se sustenta, porque, salvo prova em contrário, a presidenta não está envolvida em crime de responsabilidade. A palavra de ordem, entretanto, tende a permanecer nas ruas na ausência de uma agenda de reformas e o PT é, entre todos os partidos, o que tem a menor legitimidade para criticá-la vez que usou e abusou desta mesma retórica muitas vezes. Para a oposição, o “Fora Dilma” é útil como uma espada de Dâmocles, mas - salvo se a situação se agravar para além do que é possível imaginar - o mais provável é que o impeachment cumpra apenas um papel de deslegitimação do governo.

Para o Brasil, é melhor que as ruas se encham de protestos do que de desesperança. Em Porto Alegre, a imprensa registrou que um manifestante que pretendia abrir uma faixa a favor da “intervenção militar” foi impedido de fazê-lo, o que me pareceu um fato importante e que já traduz uma determinada consciência democrática. Em outras capitais, apareceram cartazes e dizeres com bobagens do tipo. Independente disto e de manifestações intolerantes e preconceituosas que também ocorreram, o sentido geral dos protestos se afasta da ideia de ruptura e fortalece a lógica democrática. A maioria dos que estiveram nas ruas hoje é formada por pessoas que desejam sinceramente o melhor para o Brasil. Se estas pessoas ainda não perceberam que temas como a corrupção são problemas mais amplos do que aqueles de responsabilidade do governo federal e do PT, se lhes falta um senso crítico diante dos políticos tradicionais (razão pela qual faltaram cartazes contra Renan e Eduardo Cunha, por exemplo), se há um conjunto de simplificações e mesmo torpezas na forma como expressam seu descontentamento, somos todos, de alguma forma, também responsáveis por isso. Tais limites dizem respeito às fragilidades da consciência política no Brasil e não são, aliás, privilégio dos ricos e das classe médias.

Para não agravar a crise, o governo deve respeitar as manifestações e tratá-las como um sintoma de um processo muito maior de descolamento da população diante das instituições. Não custa lembrar, por fim, que os maiores riscos para a democracia sempre estiveram nos acordos dos gabinetes, não no vozerio das ruas.


Marcos Rolim. jornalista formado pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) e doutor e mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

Nenhum comentário: