domingo, 10 de novembro de 2013

Inquérito policial não combina com o contraditório


"O inquérito policial, por si só, já é algo com sabor de passado. No mundo contemporâneo a tendência não é a investigação por inquérito e nem o Juizado de Instrução."

Vladimir Passos de Freitas

No último dia 3 de novembro, o ministro da Justiça recebeu do presidente do Conselho Federal da OAB proposta que, nos autos de inquérito policial, permite “ao investigado o direito de apresentar suas razões e requerer diligências, assistido por advogado”. Segundo a notícia, o chefe da pasta do Executivo “manifestou apoio à presença do advogado como indispensável para garantir ainda mais credibilidade à investigação”.

O inquérito policial foi introduzido no Brasil através do Decreto 4.824, de 22 de novembro de 1871, que no artigo 42 dispunha sobre os seus objetivos e formalidades. A leitura do referido dispositivo e dos cinco que o complementam naquele Decreto permite concluir que, apesar de passado tanto tempo, pouco mudou.

Esta forma de investigação sempre foi defendida por José Frederico Marques, que a considerava “uma das instituições mais benéficas de nosso sistema processual” (Elementos de Direito Processual Penal, Bookseller, 1997, v.1, p. 104).

No Brasil, ao contrário dos demais países da América Latina, não se adotou o sistema do Juizado de Instrução, ainda hoje existente na França, através do qual um juiz colhe as provas, atuando diretamente com a Polícia Judiciária e outro julga.

Aqui se optou pelo inquérito, a cargo da autoridade policial, que é uma investigação preliminar, porque, segundo lição antiga de Magalhães Noronha, “a imensidão territorial é um adversário do juízo de instrução, impossibilitando a atuação rápida e precisa do Juiz instrutor em pontos afastados do território de sua jurisdição” (Curso de Direito Processual Penal, Saraiva, 1964, p. 30). Ressalte-se que na condução do inquérito, a autoridade policial deve buscar a descoberta da verdade e não a incriminação do suspeito.

No mundo contemporâneo a tendência não é a investigação por inquérito e nem o Juizado de Instrução. É outra, ou seja, o sistema do processo acusatório, que na análise de Rúbia Mara Pereira de Carvalho, em artigo denominado Das diferenças existentes entre os Sistemas Processuais Penais, “o juiz passa apenas a julgar, deixando para as partes, autor e réu, as funções de defesa e acusação, e também não mais controla o procedimento de investigação preliminar”.

No Brasil o sistema é misto, inquisitivo ao início, por meio da apuração através do inquérito policial, e acusatório na fase judicial, cabendo às partes a produção das provas, sob o crivo do contraditório. A tendência é o juiz deixar a produção das provas a cargo das partes, sem tomar iniciativas. Nesta linha de raciocínio, Fischer e Pacelli consideram, inclusive, inválida a primeira parte do artigo 311 do CPP, que permite ao juiz decretar, de ofício, a prisão preventiva, por depender tal iniciativa de requerimento do Ministério Público ou da autoridade policial (Comentários ao Código de Processo Penal e sua Jurisprudência, Lumen Juris, 2ª ed., p. 663).

Qual seria a vantagem de estabelecer-se um contraditório no inquérito policial? Teoricamente, seria apurar-se a verdade real de forma mais democrática, participativa, dando ao Ministério Público elementos mais seguros para apresentar ou não a denúncia. Este é o aspecto ideal no plano das ideias. Só nesta visão quimérica.

No mundo real, as coisas são diferentes. Estabelecer-se o contraditório na fase de investigação seria mais um passo, quiçá o derradeiro, para que alcançássemos o primeiro lugar no ranking de países sem efetividade na Justiça Criminal. Nos últimos anos temos avançado bastante, já sendo fato público e notório a ineficiência de nossa Justiça Criminal. Não é por acaso que foragidos escolhem este país para furtar-se do cumprimento de suas penas. Um sistema que permite seguidos recursos e instâncias diversas, que impede que decisões criminais singulares ou colegiadas sejam executadas (como, por exemplo, através de seguidos embargos de declaração), não pode ser respeitado. E não é. Exagero no raciocínio? Não, por certo.

Vejamos alguns exemplos do que viria a acontecer se adotada a participação do advogado no inquérito policial: a) Ao tomar conhecimento da portaria da autoridade policial, bastaria ao imputado juntar procuração aos autos e, a partir daí, o advogado constituído reivindicar o direito de ser intimado para os atos subsequentes e a falta de intimação constituiria nulidade; b) No andamento do inquérito, com certeza seriam interpostas seguidas petições e a cada decisão sobreviriam embargos de declaração, com o consequente tumulto nos autos; c) A autoridade policial passaria a ter que dar ciência de todas as suas iniciativas e com isto as provas acabariam sendo desconstituídas previamente; d) A autoridade policial passaria a proferir decisões e delas se recorreria à autoridade administrativa superior ou se interporia habeas corpus; e) Quando o imputado fosse pobre, a autoridade policial teria que conseguir um defensor dativo, para que não se viole o princípio da isonomia (não há defensores públicos para todos os inquéritos); e) Os advogados dativos seriam indicados pela subseção da OAB e a burocracia aumentaria.

O inquérito policial, por si só, já é algo com sabor de passado, contaminado por formalismos típicos do processo judicial. Por exemplo, cartas precatórias impressas, termos de juntada, conclusão, pedidos de prazo etc. Torná-lo contraditório, pois isto é o que resultará da participação de advogado na sua tramitação, é dar-lhe o caráter de uma ação penal preliminar. E depois tudo se repetirá em juízo. E se for processo de júri, de novo no plenário.

Se o sistema inquisitivo já cheira a mofo, porque introduzido em 1871, deve ser adotada uma nova forma, algo mais consentâneo com a era virtual em que vivemos. Por exemplo, termo circunstanciado para crimes apenados com penas maiores, desde que de investigação simples (como em caso de furto simples). Ou então, simplificá-lo para que seja mais ágil, pesquisando-se como atuam as polícias dos países mais avançados e também nossos vizinhos latino-americanos. Dando, enfim, ao Ministério Público, sem formalismo, os elementos essenciais para que delibere sobre a propositura da ação penal.

Exatamente o oposto da proposta de que na investigação haja um contraditório, mesmo que atenuado, a qual levaria à ineficiência no grau máximo, indo contra o princípio constitucional da eficiência, previsto expressamente no artigo 37 da Carta Magna.

Aliás, o assunto já foi objeto de decisões do Supremo Tribunal Federal. Em acórdão relatado e julgado em 22 de setembro de 1992, da lavra do eminente ministro Celso de Mello, reconhecidamente um dos maiores defensores dos direitos e garantias individuais, a Corte decidiu que “a prerrogativa inafastável da ampla defesa traduz elemento essencial e exclusivo da persecução penal em juízo” (RTJ 147/219).

É óbvio que tudo o que foi dito não significa descumprimento do direito do advogado examinar autos de inquérito, direito este previsto no artigo 7º, inciso XIV, do Estatuto da OAB, e reconhecido pela jurisprudência. Nem a quebra de outras prerrogativas absolutamente necessários ao exercício da ampla defesa, como formular requerimento à autoridade policial, estar presente na tomada de depoimentos, indicar testemunhas e outros. Significa, única e exclusivamente, chamar a atenção para o fato de que a investigação não pode ser feita com o contraditório, porque daí nada se investigará e o resultado previsível será a impunidade absoluta.

Em suma, é preciso, sim, avançar no campo das investigações criminais, fazendo com que sejam atreladas ao mundo contemporâneo. Isto pode resultar na mudança e até mesmo no fim do inquérito policial. No entanto, mudar para que o inquérito permaneça como está, só que sob o crivo do contraditório, é dar um passo atrás.

Vladimir Passos de Freitas que é desembargador federal aposentado do TRF 4ª Região, onde foi presidente, e professor doutor de Direito Ambiental da PUC-PR.

FONTE: http://www.conjur.com.br/2013-nov-10/segunda-leitura-inquerito-policial-nao-combina-contraditorio

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

PEC que desmilitariza e unifica as polícias está em análise na CCJ do Senado


A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 51/2013, que institui a desmilitarização e unificação das policiais estaduais no Brasil, está em análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado. A iniciativa do senador Lindbergh Farias (PT-RJ) foi protocolada no dia 24 de setembro e aguarda relatório do senador Humberto Costa (PT-PE) na CCJ.
A PEC 51/2013 também estabelece a criação de uma Ouvidoria externa para as policiais e confere autonomia para que os estados decidam qual modelo de policiamento adotar, desde que a força policial seja civil e de ciclo completo – ou seja, que uma mesma corporação realize as funções de policiamento ostensivo e de investigação.
Confira aqui o texto da PEC 51/2012 na íntegra
Especialistas ouvidos pelo Sul21 consideram que a proposta pode pautar um debate nacional a respeito da desmilitarização da Polícia Militar. Entretanto, entendem que somente a desmilitarização, por si só, não irá resolver todos os problemas que afetam as corporações policiais, nem garantir à sociedade que a polícia se torne uma força pública mais democrática e que respeite a cidadania.
O texto da PEC foi elaborado em conjunto com o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário nacional de Segurança Pública. A reportagem entrou em contato com a equipe do senador Lindbergh Farias, que, até o fechamento desta edição, não retornou a ligação.
“Formação do policial ainda está ligada a uma espécie de ethos de guerreiro”, critica tentente da PM da Bahia
Tenente da Polícia Militar (PM) da Bahia, estudante de Filosofia e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Danilo Ferreira observa que a PEC 51/2013 reúne em seu texto diversas outras propostas que já tramitam no Congresso Nacional. Para ele, a desvinculação das PMs em relação às Forças Armadas é positiva.
“É algo muito reivindicado e esperado pela grande maioria dos policiais militares do Brasil. A vinculação das PMs às Forças Armadas submete o policial ao código penal militar e faz com que deixemos de ter direitos que qualquer outro indivíduo tem”, explica.
Ele cita como exemplo o fato de que policiais militares não possuem direito à greve. E também critica a “limitação à liberdade de expressão” nos quartéis. “Eu sou policial e minha função é garantir a cidadania das pessoas. É uma contradição que a minha própria cidadania seja limitada”, critica.
Entretanto, o tenente afirma que não será somente uma mudança de nome que irá tornar a polícia desmilitarizada. “A formação do policial militar ainda está ligada a uma espécie de ethos de guerreiro. O policial socialmente positivado é aquele que está pronto para o combate, como se fosse um militar indo à guerra”, lamenta.
Para Danilo, a conduta autoritária e truculenta das polícias militares durante as manifestações é fruto desta mentalidade. “Flagramos policiais imbuídos de uma lógica militarista, bélica e repressiva quando precisam lidar com questões que envolvem necessidade de negociação e diálogo. Essa mentalidade pode permanecer, mesmo com a desmilitarização. Nossas policiais civis e guardas municipais não são militarizadas e agem da mesma forma. Não é somente a estética militar que implica em uma postura repressora”, compara.
“É preciso acabar com dependência da PM pelo Exército”, defende Guaracy Mingardi
Cientista político, especialista em Segurança Pública e ex-secretário municipal da área em Guarulhos, Guaracy Mingardi defende a estruturação de diversas polícias por estado – ainda que com um único comando político. Ele entende que um modelo que dê mais liberdade às unidades da federação facilita o controle sobre as corporações.
“Se o estado de São Paulo tiver apenas uma polícia, ela terá 140 mil pessoas, o que a tornaria inviável”, entende. Para ele, o modelo inglês serve como um bom exemplo. “Lá, a polícia é uma só, mas os comandos são regionais. Todos possuem uma mesma carreira e uma mesma chefia política, mas existem diferentes policias por região”, complementa.
Guaracy acredita que a principal conquista da desmilitarização será a retirada do poder que o Exército possui sobre as PMs de todo o país. “Existe uma Setoria-Geral das policias militares em Brasília, sob comando do Exército. Isso transforma a PM em uma força auxiliar do Exército. É preciso acabar com essa dependência”, cobra. Ele também defende o fim da Justiça Militar, que ainda existe no Rio Grande do Sul, em Minas Gerais e em São Paulo.
Polícia deve contar com estruturas internas e externas de fiscalização, diz especialista
Professor de Direito na Fundação Getúlio Vargas (FGV) e especialista em Policiamento Comunitário e Segurança Urbana, Teodomiro Dias Neto afirma que a PEC 51/2013 tem o mérito de “propor um modelo alternativo de polícia ao país”. Para ele, a criação de uma força de ciclo completo “é essencial”. “A PM e a Polícia Civil atuam de forma pouco cooperativa e, muitas vezes, até prejudicial”, pontua.
A PEC estabelece a criação de uma Ouvidoria externa para apurar abusos cometidos pela polícia. Entretanto, não fica claro se serão mantidas estruturas internas de correição. Atualmente, cada corporação possui sua própria corregedoria, em um sistema onde os próprios colegas se investigam.
“As policias dos Estados Unidos e de países da Europa possuem instrumentos de controle internos e externos bastante fortes. Não podemos ter a pretensão de que a polícia será controlada somente de fora para dentro”, analisa o professor Teodomiro Dias Neto.
Para ele, o modelo adequado de controle é “piramidal” e deve incentivar os mecanismos internos. “O formato institucional de uma corregedoria é uma discussão importante. É essencial ter uma boa estrutura de controle interno, o que não significa prescindir de controles externos”, observa.
O tenente da PM baiana Danilo Ferreira afirma que as corregedorias internas das corporações “não são suficientes”. “Imagina eu ter que investigar o indivíduo que trabalha comigo na viatura. Por mais probo que eu possa ser, sempre há, no mínimo, um desconforto com essa situação. Qualquer profissional lidaria com isso de maneira bastante complicada”, avalia.


Por Samir Oliveira, do Portal SUL 21
http://www.sul21.com.br/jornal/todas-as-noticias/politica/pec-que-desmilitariza-e-unifica-as-policias-esta-em-analise-na-ccj-do-senado/