quinta-feira, 17 de julho de 2008

Algema e uniforme listrado continuam preocupando muita gente...

17/07/20

Certa vez, assisti a uma cena na televisão que nunca me saiu da memória. A imagem mostrou, com espantosa naturalidade para um brasileiro como eu, um homem sendo conduzido ao Tribunal com algemas nos pulsos e tornozelos e vestido com um uniforme listrado. Meu espanto tinha motivo: a emblemática imagem mostrava um ídolo esportivo conhecido em todo o mundo. O esporte mexe com muitas pessoas. Sou uma delas, em época de Copa do Mundo de futebol, assisto até jogo da Arábia Saudita com a Ucrânia... Agora, estamos próximos de mais uma Olimpíada - já estou me preparando, vou ter que me familiarizar com o badminton, o softbol, o taekwondo e o hóquei na grama...

Voltando ao esportista algemado, era o ex-campeão mundial de todos os pesos, Mike Tyson. Gosto de boxe, talvez por isso aquela cena tenha me impressionado. Minha surpresa foi grande quando vi o campeão sendo conduzido algemado e com uniforme de prisioneiro. No país dele, preso é preso, algema e uniforme fazem parte do sistema - os cidadãos sabem o risco que correm quando afrontam as leis. Procurei saber se o mesmo tratamento é dado a outros famosos - é. Através da internet, pude constatar que gente, que, “em tese”, oferecem pouco perigo, como a milionária Paris Hilton e o cantor Michael Jackson aparecem algemados, e o ator inglês Hugh Grant, com um vistoso número no peito.

Em alguns lugares do mundo isso seria difícil de acontecer. Se alguém famoso, principalmente, rico e poderoso, fosse mostrado algemado num certo país da América do Sul, a “exposição” seria taxada de midiática e desnecessária. Lá, isso é algo reservado para pobres ou gente sem poder. No lado debaixo do Equador, algemar certo tipo de gente não “pega” bem. Para alguns, isso, quando necessário, deve ser feito sem a presença de fotógrafos e longe das câmeras da televisão - o povo, que banca a todos, não precisa tomar conhecimento... Algema combinada com uniforme de presidiário então, nem pensar... Talvez um dia, a população do tal país consiga ver bandidos de colarinho branco algemados e com as camisas de grife trocadas por macacões de presidiários, sem que isso cause qualquer espanto.

No tal país, quando um poderoso é preso e algemado “explode” uma grande discussão, com um belicismo retórico que deixa a população e o mundo jurídico estupefatos pela evidente depreciação da vida pública que isso ocasiona. Quando isso acontece, os estudantes de direito e outros ficam confusos quando lembram as lições aprendidas na escola e, mais ainda, quando entrevistas são concedidas com intrincadas teses, ditas com a intenção de convencer a população de que presos famosos estão sendo injustiçados, embora a polícia tenha o cuidado de fazer investigações observando as leis, com acompanhamento de procuradores da República e obedecendo a mandatos judiciais.

Nessas ocasiões podem ser lidos editoriais em que a imprensa, no alto de uma discutível sapientia, fala coisas como “o uso de algemas precisa ser adequado ao ‘potencial de periculosidade’ dos suspeitos” e “algemar gente famosa se presta mais à demagogia social do que a verdadeira justiça”. É incrível! A “solução” está à vista no tal país e ninguém percebeu. Os “fazedores” de editoriais poderiam substituir os professores nas Academias de Polícia. Eles trazem de berço algo raro - o “feeling” necessário para saber quando alguém é perigoso... Certamente devem saber, também, o que passa na cabeça dessa gente nessas horas... Para sorte do país, a maioria do povo sabe quem está fazendo as coisas certas. Esse mesmo povo já percebeu, também, que existe conversa e palpite demais enquanto está passando da hora do dinheiro surrupiado ser recuperado, pois é evidente que esses recursos precisam ser usados para transformar o país num lugar mais justo, sem privilégios para golpistas travestidos de empresários.

Lá no lado debaixo do Equador também não há indignação quando outros tipos de presos são mostrados algemados. Todos lembram: foi preso um bandido estrangeiro que traficava drogas. O mesmo foi algemado e mostrado em rede nacional. Ninguém reclamou da exposição, pelo contrário, todos concordam que ele teve o que mereceu. A diferença é que lá existem bandidos e bandidos - são coisas diferentes, embora todos sejam criminosos. Mas indignação por exposição de imagem não é para todos; ela é reservada aos criminosos do colarinho branco, mesmo quando cometem crimes hediondos estuprando os cofres públicos.

Por enquanto, dizem que só resta ao povo do tal país - incluídos aí os que comem lixo debaixo de viadutos, os que morrem sem atendimento médico, os que têm seus filhos mortos na guerra urbana, os policiais e muitos professores que ganham salários aviltantes, os que assistem a seus bairros serem dominados por traficantes, os desempregados, os que são assaltados quando voltam do trabalho, os que vêem recém-nascidos morrerem em hospitais e os sofredores de todos os tipos - sonhar com a punição dos infratores das leis do país, inclusive os do colarinho branco. Dizem que o sonho inclui algema e uniforme de presidiário. Muitos acham que é um sonho difícil de ser concretizado no tal país situado no lado debaixo do Equador...

PS: Repasso para reflexão - Satyagraha significa “insistência pela verdade”. É de se prosseguir, então, para vencer os dalits (párias/intocáveis), o que significa dizer: tratar de forma igualitária e aplicar as mesmas regras do jogo a todos os brasileiros.

Valacir Marques Gonçalves é Jornalista e Bel.em Direito.
www.valacir.com

Direto do inferno

O clamor obsessivo dos intelectuais, dos políticos e da mídia pela "supressão das desigualdades" e por uma "sociedade mais justa" pode não produzir, mesmo no longo prazo, nenhum desses dois resultados ou qualquer coisa que se pareça com eles. Mas, de imediato, produz ao menos um resultado infalível: faz as pessoas acreditarem que o predomínio da justiça e do bem depende da sociedade, do Estado, das leis, e não delas próprias. Quanto mais nos indignamos com a "sociedade injusta", mais os nossos pecados pessoais parecem se dissolver na geral iniqüidade e perder toda importância própria.

Que é uma mentira isolada, uma traição casual, uma deslealdade singular no quadro de universal safadeza que os jornais nos descrevem e a cólera dos demagogos verbera em palavras de fogo do alto dos palanques? É uma gota d'água no oceano, um grão de areia no deserto, uma partícula errante entre as galáxias, um infinitesimal ante o infinito. Ninguém vai ver. Pequemos, pois, com a consciência tranqüila, e discursemos contra o mal do mundo.

Eliminemos do nosso coração todo sentimento de culpa, expelindo-o sobre as instituições, as leis, a injusta distribuição da renda, a alta taxa de juros e as hediondas privatizações.

Só há um problema: se todo mundo pensa assim, o mal se multiplica pelo número de palavras que o condenam. E, quanto mais maldoso cada um se torna, mais se inflama no coração de todos a indignação contra o mal genérico e sem autor do qual todos se sentem vítimas.

É preciso ser um cego, um idiota ou completo alienado da realidade para não notar que, na história dos últimos séculos, e sobretudo das últimas décadas, a expansão dos ideais sociais e da revolta contra a "sociedade injusta" vem junto com o rebaixamento do padrão moral dos indivíduos e com a conseqüente multiplicação do número de seus crimes. E é preciso ter uma mentalidade monstruosamente preconceituosa para recusar-se a ver o nexo causal que liga a demissão moral dos indivíduos a uma ética que os convida a aliviar-se de suas culpas lançando-as sobre as costas de um universal abstrato, "a sociedade".

Se uma conexão tão óbvia escapa aos examinadores e estes se perdem na conjeturação evasiva de mil e uma outras causas possíveis, é por um motivo muito simples: a classe que promove a ética da irresponsabilidade pessoal e da inculpação de generalidades é a mesma classe incumbida de examinar a sociedade e dizer o que se passa. O inquérito está a cargo do criminoso. São os intelectuais que, primeiro, dissolvem o senso dos valores morais, jogam os filhos contra os pais, lisonjeiam a maldade individual e fazem de cada delinqüente uma vítima habilitada a receber indenizações da sociedade má, e, depois, contemplando o panorama da delinqüência geral resultante da assimilação dos novos valores, se recusam a assumir a responsabilidade pelos efeitos de suas palavras. Então têm de recorrer a subterfúgios cada vez mais artificiosos para conservar uma pose de autoridades isentas e cientificamente confiáveis.

Os cientistas sociais, os psicólogos, os jornalistas, os escritores, as "classes falantes", como as chama Pierre Bourdieu, não são as testemunhas neutras e distantes que gostam de parecer em público (mesmo quando em família se confessam reformadores sociais ou revolucionários). São forças agentes da transformação social, as mais poderosas e eficazes, as únicas que têm uma ação direta sobre a imaginação, os sentimentos e a conduta das massas. O que quer que se degrade e apodreça na vida social pode ter centenas de outras causas concorrentes, predisponentes, associadas, remotas e indiretas; mas sua causa imediata e decisiva é a influência avassaladora e onipresente das classes falantes.

Debilitar a consciência moral dos indivíduos a pretexto de reformar a sociedade é tornar-se autor intelectual de todos os crimes - e depois, com redobrado cinismo, apagar todas as pistas. A culpa dos intelectuais ativistas na degradação da vida social, na desumanização das relações pessoais, na produção da criminalidade desenfreada é, no seu efeito conjunto, ilimitada e incalculável. É talvez por eles terem se sujado tanto que suas palavras de acusação contra a sociedade têm aquela ressonância profunda e atemorizante que ante a platéia ingênua lhes confere uma aparência de credibilidade. Ninguém fala com mais força e propriedade contra o pecador do que o demônio que o induziu ao pecado. O discurso dos intelectuais ativistas contra a sociedade vem direto do último círculo do inferno.

Olavo de Carvalho
Jornal da Tarde, 13 de abril de 2000